Recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a chamada norma geral “antielisiva”, disposto no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN), possui caráter constitucional. A ação contestava o artigo 1º da Lei Complementar nº 104, de 2001, que incluiu o artigo supracitado no CTN, assegurando que o fisco “poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”.
A Relatora da ação, Ministra Carmen Lúcia destacou que para “a desconsideração autorizada pelo dispositivo está limitada aos atos ou negócios jurídicos praticados com intenção de dissimulação ou ocultação desse fato gerador.” Segundo a ministra, a norma busca dar respaldo à legalidade tributária e a chamada “lealdade” tributária.
Sabendo que o tema “planejamento tributário” gera acaloradas discussões na seara judicial e administrativa, a questão que fica é: em que pese a declaração de constitucionalidade assentada pelo Supremo Tribunal Federal, pode o fisco se valer da chamada “norma antielisiva” para desconsiderar planejamentos tributários tidos como abusivos? A ausência de regulamentação do procedimento a ser adotado, como determina o art. 116, parágrafo único do CTN, ainda assim viabilizaria a utilização deste dispositivo pelas autoridades fazendárias?
Analisando o arcabouço jurídico tributário vigente, a resposta é não. Ao ressalvar que devem ser “observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”, o legislador complementar acrescentou requisitos procedimentais ao exercício da competência administrativa tributária, ampliando as garantias do contribuinte. Assim, tendo em vista que a redação do dispositivo fala em “procedimentos a serem estabelecidos” – fazendo remissão, portanto, a período futuro, vindouro – conclui-se a norma ostenta eficácia limitada.
Significa dizer, portanto, que norma em tela não é autoexecutável, devendo ter sua aplicação discriminada em lei ordinária, sob pena de não poder ser utilizada nos termos lançados no CTN. Neste contexto, percebe-se que desde a entrada em vigor da Lei Complementar 104/01 o legislador buscou dar guarida às exigências contidas no parágrafo único do art. 116 do CTN.
No ano de 2002, logo após a entrada em vigor da referida lei complementar, a Medida Provisória 66/02 surgiu na tímida tentativa de regulamentar o processo para desconsideração dos negócios jurídicos efetuados pelos contribuintes. O artigo 13 da norma estabelecia que os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária seriam desconsiderados observando-se os procedimentos previstos nos artigos 14 a 19 da mesma norma.
Foi justamente o art. 14 da Medida Provisória em questão que despertou maiores indagação: segundo o preceito do dispositivo, a autoridade fiscal poderia desconsiderar negócios jurídicos que não atentassem ao chamado “propósito negocial” (tema também muito discutido em seara a administrativa) ou eventual prática de ações que aparentassem abuso sobre a forma.
Através dos §§ 2º e 3º do mesmo dispositivo, buscou-se trazer os contornos mínimos para que se pudesse identificar quais atos ou negócios jurídicos seriam passíveis de desconsideração pela administração tributária. No caso da definição de propósito negocial, o legislador, mesmo que de forma indeterminada, buscou identificar os pontos característicos capazes de definir, ainda que por raciocínio inverso, as hipóteses ensejadoras de sua ausência. Por sua vez, ao definir o abuso de formas, inseriu dois novos conceitos até então novos no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam o de negócio jurídico indireto e negócio jurídico dissimulado.
Na seara parlamentar, tendo em vista as grandes discussões que foram causadas com o advento da referida norma e, também, a forma como se pretendia regulamentar a norma geral antielisiva, os dispositivos que detinham tal objetivo foram desconsiderados quando da conversão da Lei 10.637/2002.
Após este revés sofrido pelo Governo Federal no intuito de buscar a consolidação do procedimento a ser seguido a partir da implementação da norma geral do parágrafo único do CTN, novas tentativas se sucederam à Medida Provisória 66/02. No ano de 2007, sobreveio o Projeto de Lei nº 133/07 proposto pelo Deputado Federal à época Flávio Dino (PCdoB/MA).
A proposta apresentada pelo congressista buscava, além de outros pontos, especialmente no que diz respeito às relações de emprego, dar liberdade para as autoridades fiscais desconsiderar atos ou negócios jurídicos que pudessem acarretar prejuízo ao erário, após efetiva autorização judicial. Este é, claramente, a disposição contida no artigo 1º, caput, do PL então apresentado pelo membro do PCdoB. Após passar pela Mesa Diretora em março de 2007, o PL 133/07 seguiu o procedimento legislativo a passos lentos, tendo passado pela apreciação da Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público (CTASP), Comissão de Finanças e Tributação (CFT), Constituição, Justiça e Cidadania (CJC), Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços (CDEIC).
Ainda no ano de 2007, sobreveio o Projeto de Lei 536/07, de autoria do Governo Federal – mais precisamente do Ministro da Economia à época, Guido Mântega. O projeto, cunhado de qualidade técnica indiscutível e de estrito enfoque tributário, foi recebido pela Mesa Diretora e apensado, imediatamente, ao PL 133/07. Após serem encaminhados para as Comissões Especiais, a CTASP, na figura do Deputado Vicentino, apresentou interessante parecer sobre ambos os Projetos de Lei. Segundo o órgão interno do legislativo, o PL 133/07 deveria ser rejeitado, uma vez que a matéria (especialmente a de cunho trabalhista) não deveria ser ratificada.
Quando analisado, porém, as razões do PL 536/07, que também tratava da matéria, a análise da CTASP foi em sentido diverso: segundo o parecer da relatoria do órgão interno, a norma descrita no parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional não possui caráter autoaplicável, ou seja, seria necessário, para a eficácia da norma prevista no dispositivo, a elaboração de outra norma, de cunho regulamentadora. É que, conforme amplamente debatido por especialistas, a norma do parágrafo único do art. 166 do CTN é caracterizada como norma de eficácia limitada, que carece, portanto, de outra norma para tornar sua aplicação válida. Neste contexto, a nova tentativa de regulamentação restou fracassada.
Por fim, em 2015, sobreveio a Medida Provisória 685/2015, editada na esperança de nacionalizar o Plano de Ação 12 do projeto BEPS, que, em nome da transparência internacional e da necessidade de antecipação aos riscos causados pelos esquemas abusivos, determinava que os contribuintes deveriam revelar seus movimentos de planejamento tributário agressivos. O art. 7º da referida Medida Provisória previu, expressamente, a necessidade de os contribuintes informar à Receita Federal do Brasil planejamentos tributários que acarretassem supressão, redução ou diferimento de tributos, entre outros aspectos. Segundo a norma então vinculada, caso as autoridades fiscais não reconhecessem a legitimidade do planejamento, previa-se o procedimento de intimar o contribuinte para recolher ou parcelar, dentro de 30 dias, os tributos devidos acrescidos apenas de juros de mora, sem aplicação de multa de ofício.
Critérios como a ausência de “razões extra tributárias relevantes”, a prática de operações que assumissem “forma não usual”, a celebração de “negócio jurídico indireto”, não poderiam, de fato, jamais ser admitidos como fundamento para justificar a desconsideração pela fiscalização, na medida em que se mostraram vagos e com alto grau de indeterminação, trazendo um cenário de total insegurança para o contribuinte. Como se sabe, os arts. 7º a 12 da Medida Provisória n. 685/2015 foram suprimidos com base nos argumentos contidos na Emenda de n. 68, sob o argumento de que as normas ali encampadas violariam garantias constitucionalmente asseguradas aos contribuintes, princípios legais e decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e, com isso, mais uma tentativa de regulamentar a norma antielisiva brasileira restou fracassada.
Fica evidente, portanto, que até o presente momento, os conceitos de propósito negocial, abuso de formas e procedimentos para aplicação do art. 116, parágrafo único, do CTN não foram expressamente incorporados pela legislação brasileira, haja vista que nenhuma das investidas do legislativo surtiram efeitos reais no bojo da legislação nacional, não podendo o referido dispositivo ser aplicado para fins de desconsideração de negócios jurídicos praticados pelos contribuintes, a despeito da declaração de constitucionalidade da norma.