O precedente que será analisado é importante para o estudo do planejamento tributário contemporâneo, tendo em vista que traz uma visão recente do CARF acerca da norma contida no art. 116, parágrafo único, do CTN.
Neste julgamento, o conselho entende que a norma contida no comando legal acima descrito pode sim ser imediatamente aplicado, sem observância de lei ordinária regulamentadora. Posicionamento de difícil compreensão, mas importante para o estudo da norma ante elisiva.
Em apertada síntese, o auto de infração de deu origem ao julgamento ora analisado foi lavrado em 2004, uma vez que, no entendimento da autoridade fiscal, a contribuinte I.M.F Ltda utilizou-se de empresa pertencente ao mesmo grupo, optante pelo regime do Simples Nacional, denominada S.G.I.T Ltda, para alocar seus funcionários e, assim, reduzir a carga tributária incidente sobre a folha de salários.
Entendeu o agente que a I.M.F e a S.G.I.T Ltda eram empresas submetidas ao mesmo controle societário, tendo, inclusive, mesmos endereços, o que demonstraria, supostamente, a simulação da operação para beneficiar-se da redução da carga tributária no que diz respeito aos tributos previdenciários:
Todos os fatos relatados contemplam provas evidentes de que o controle gerencial, financeiro e administrativo das duas empresas é único e realizado pela empresa I.M.F. Portanto, esta fiscalização entende que ocorreu simulação na constituição da S.G.I.T Ltda, com a finalidade de se elidir contribuições sociais destinadas à Seguridade Social, já que a empresa criada é optante pelo SIMPLES. Fica evidente ter ocorrido tão-somente a divisão formal da empresa-mãe, I.M.F para que por meio da opção pela tributação do SIMPLES, a empresa pudesse usufruir dos benefícios, ou seja, o não recolhimento da alíquota de 20,0% da contribuição patronal, e aquela destinada ao financiamento dos benefícios concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrentes dos riscos ambientais do trabalho (RAT) e de terceiros (5,8%). (alterada a qualificação do contribuinte).
Iniciado o voto pelo conselheiro relator, entendeu este que a decisão proferida em primeira instância (DRJ) não carecia de nenhum reparo, assegurando, inclusive, a possibilidade de a autoridade se valer do art. 116, parágrafo único, do CTN para desconsiderar os negócios jurídicos praticados pelo contribuinte. Segundo o entendimento fixado, mesmo que o dispositivo em tela necessite de regulamentação por lei ordinária, tal regulamentação estaria dispensada, tendo em vista que o Decreto nº 70.235/72 – que regulamenta o processo administrativo fiscal – foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 com status de lei ordinária.
Nesse contexto, o racional do parágrafo único do art. 116 do CTN faculta à autoridade administrativa a desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. E, diferente do que afirma a Recorrente, entendo que essa exigência de regulamentação está suprida pelo Decreto n. 70.235/1972, que dispõe sobre o processo administrativo fiscal, e foi recepcionado pela CF/88 com força de lei ordinária.
Trouxe o relator entendimento proferido em outros julgamentos, como aquele que fora exarado no Acórdão 1201-001.136, de 26 de novembro de 2014:
2.2) Da Alegada Inaplicabilidade do Art.116, Parágrafo Único, do CTN Ao longo de sua peça recursal a interessada por diversas vezes afirma ser incabível a exigência do crédito tributário lançado com base em planejamento tributário abusivo, haja vista que a aplicabilidade do a seguir transcrito art. 116, parágrafo único, do CTN, dependeria de regulamentação por lei ordinária, algo que ainda não ocorreu: Pois bem, realmente a doutrina majoritária afirma que o dispositivo em questão ainda não é aplicável, sob o argumento de que não foi promulgada a lei ordinária que a regulamentaria. Havendo, então, duas interpretações para o mesmo dispositivo legal, caberá a esta Turma, ao menos em relação ao caso sob exame, decidir qual das duas deverá prevalecer.
Mas a interpretação de normas jurídicas pelo aplicador do Direito não é um ato de vontade, ou seja, havendo duas interpretações possíveis, deverá o aplicador verificar qual delas é a “correta”, segundo as regras de hermenêutica jurídica. E em um sistema como o adotado em nosso país, de supremacia da Constituição, a primeira providência nos casos em que houver duas interpretações possíveis para a mesma norma jurídica é verificar se há incompatibilidade entre alguma delas e a Carta Magna. Feito isso, e acaso ambas forem compatíveis, deve-se verificar se alguma delas melhor concretiza as normas constitucionais. Se ambas as interpretações bem concretizem a Constituição, passa-se às demais regras de hermenêutica jurídica a fim de verificar se qual delas é a “correta”.
Mas, no caso dos presentes autos essa última providência não será necessária, como se verá a seguir. A Carta de 1988, como é cediço, instituiu uma enorme quantidade de direitos e garantias fundamentais, bem como atribuiu ao Estado o dever de concretizá-los. E uma vez que a concretização de direitos exige o dispêndio de vultosos recursos públicos, recursos esses obtidos pelo Estado principalmente via tributação, surge por determinação constitucional, ao lado dos direitos e garantias fundamentais, o dever fundamental de pagar tributos. Pois bem, os planejamentos tributários abusivos são práticas adotadas por grandes empresas, via de regra engendrados por caras “empresas de consultoria”, e têm como finalidade possibilitar ao contribuinte fugir ao seu dever fundamental de pagar tributos.
O micro, o pequeno e o médio contribuintes via de regra não praticam elisão fiscal abusiva pois os custos do planejamento dificilmente compensariam a economia de tributos. Nesse sentido, interpretar-se o art. 116, parágrafo único, do CTN, introduzido pela Lei Complementar nº 104/2001, da forma defendida pela ora recorrente, significaria uma autorização para que os grandes contribuintes deixassem de cumprir, ao menos até a promulgação da lei ordinária (e já se vão quase 14 anos de omissão legislativa no âmbito federal), o seu dever fundamental de pagar tributos, mediante a adoção de planejamentos tributários abusivos. Seria assim uma inovação legislativa com vista a impedir que o fisco coibisse o ilícito, já que, como ressalta Torres, o combate à fraude à lei e ao abuso de forma jurídica já existia mesmo antes do advento da norma em questão.” (original não ostenta os grifos).
Fica claro que existe uma busca por soluções imediatas ante a ausência de lei que regulamente o procedimento a ser adotado quando da aplicação do art. 116, parágrafo único, do CTN. No acórdão paradigma citado no julgamento aqui analisado, percebe-se que é feita uma “intepretação conforme” do dispositivo supra indicado: em que pese a ausência de legislação específica, a norma geral antielisiva deveria, segundo entendimento, ser interpretada à luz de preceitos constitucionais, não podendo o estado ficar à mercê de anos de omissão legislativa, devendo-se observar, portanto, o princípio do dever fundamental de pagar impostos.
Ora, tal entendimento não nos parece o mais acertado. Se a Constituição Federal é a baliza que deve reger as relações entre Estado e Contribuinte – inclusive conforme acentuado pelo colegiado administrativo – deve-se, em primeiro lugar, atentar para o princípio de legalidade tributária, primado base do sistema tributário nacional. Não é a toa que o constituinte originário, ao inaugurar a seção dois do capítulo seis do texto constitucional (das limitações ao poder de tributar), inseriu a legalidade como o primeiro princípio a ser observado pelo Estado, nos termos do art. 150, inciso I, da CF/88.
Consoante doutrina de Rothmann[1], tem-se a legalidade com
(…) o fundamento de toda a tributação, sem o qual não há como se falar em Direito Tributário. De fato, é a necessidade de uma base legal que transforma a relação tributária em relação jurídica, retirando-a do campo do mero arbítrio.
Nesta linha, não se pode concluir que o:
(…) dever fundamental de pagar impostos” deva-se sobrepor à legalidade tributária: se o parágrafo único do art. 116 do CTN exige a observância de lei ordinária específica sobre a matéria, não há espaço para intepretações extensiva, pois, em Direito Tributário, o princípio da legalidade estrita é a bússola orientadora do Estado. Veja-se: do Estado. Não há se falar em princípio constitucional tributário pró-Estado, pois os primados previstos na Carta Magna foram destinados para os contribuintes, justamente contra os arbítrios estatais.
Segundo Hensel[2]:
Em vista da vinculação à lei, tanto o Estado, na qualidade de credor, como do devedor tributário, o primeiro não pode ser considerado “persona potentior”. A norma jurídica e especialmente o fato gerador criam a plataforma jurídico-tributária comum, na qual o Estado e a pessoa que realiza o fato gerador se situam em posição de igualdade, como credor e devedor.
Na visão de Silva[3], somente em virtude de lei pode o Poder Público exigir ação ou abstenção, tampouco proibir coisa alguma:
O princípio da legalidade é nota essencial do Estado de Direito. É também, por conseguinte, um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, porquanto é da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Toda sua atividade fica sujeita à „lei‟, entendida como expressão da vontade geral, que só se materializa num regime de divisão de Poderes em que ela seja o ato formalmente criado pelos órgãos de representação popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição. É nesse sentido que se deve entender a assertiva de que o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, nem tampouco mandar proibir coisa alguma aos administrados senão em virtude de lei.
Diante de tais fatos, não nos parece certa a intepretação no sentido de que, em não havendo legislação específica sobre a matéria, deve-se aplicar legislação (não ordinária) geral. Tal situação dá carta branca para que as autoridades fiscais passem a burlar a legalidade, seja colhendo subterfúgios para aplicação de norma de eficácia limitada, seja para impor fatos geradores que sequer foram efetivados.
[1] ROTHMANN, Gerd Willi. O princípio da legalidade tributária. Revista de Direito Administrativo, São Paulo, n. 109, p. 11-33, jul./set.1972. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/viewFile/36954/35723. Acesso em: 10 nov. 2019.
[2] HENSEL, Albert. Kruse H. W. Gesetzmaessige Verwaltung. Tatbestandsmaessige Besteuerung, in: “Vom Rechtsschutz im Steuerrecht”, Duesseldorf, 1960.
[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 420.